Ela olhou ao redor. Nada viu e nem sequer olhou, não tinha olhos. Mas estava ali, parada, estática. Nada glamorosa, não passava de uma imitação barata de mármore branco, feita com um granito de baixa qualidade, comprado numa promoção. Se pudesse sentir, talvez não sentisse grande orgulho próprio, embora estivesse sempre reluzente. Se pudesse lembrar ou usar algo perto de uma memória, talvez fosse alguma coisa, mas não era nada. Era apenas uma pia.
Ela nunca tinha saído dali. Do depósito para aquele canto e naquele canto ficou. Um pedreiro de qualidade chamado Luís tinha feito instalação e acabamento notáveis apesar dos baixos recursos. Havia uma sólida estrutura de sustentação em alvenaria por fora e, por dentro, treliças metálicas e azulejos brancos. As portas do armário embutido eram de madeira envernizada e seus puxadores feitos em metal cromado, tal como o cifão e o restante do encanamento ali embaixo. A torneira direcionável e os dois registros também eram cromados, saíam da pia e não da parede.
A pia nem sabia, mas se fosse dada a entender as coisas e a sentir como gente, decerto acabaria percebendo que era a coisa mais bem feita dentro daquela cozinha diminuta e simples. Ofuscava o restante das coisas mas, não importava, ela não podia notar e nem dar opiniões sobre nada. Nunca poderia ter idéia de que fora colocada ali com o mesmo esmero que um João de Barro constrói a própria casa. Ficava ali somente, passiva, tomando banho de sol, recebendo sujeiras e limpando coisas e sendo limpa eventualmente. Às vezes folhas voavam pela janela que ficava ali acima. Mas nada a incomodava.
Luis, que não aparecia muito por ali a não ser para mostrar o imóvel, um dia apresentou a casa para dois jovens recém-casados. Rosinha, mulher simples, ficou encantada com aquela pia. Para Ulisses, o preço era bom e as parcelas acessíveis. Então, negócio fechado.
Logo apareceram outras coisas perto da pia, como uma mesa dobrável para dois, uma geladeira miúda dos anos oitenta, alguns panos e vassouras. Com o tempo um armariozinho conseguiu um espaço numa parede. E ficaram pela casa apenas Rosinha e Ulisses.
Rosinha era uma morena miúda, ninguém que arrastasse multidões, mas era bonita. Transpirava vivacidade. Falava sozinha pela cozinha e a todo momento passava panos na pia. Era quem mantinha as coisas em ordem e quem fazia a comida. Diarista, estava habituada com essa rotina.
Se pudesse fazer uma observação sobre Ulisses, a pia provavelmente diria que ele não sabia muito além de colocar comida no prato ou algo dentro de um copo. Era um serralheiro. Tinha uma barriguinha de cerveja, às vezes trazia amigos na ausência da esposa e levava mesa e banquetas lá para fora. Se Rosinha não trouxesse as coisas de volta para o lugar, não eram sozinhas que voltavam. Aliás, se ela não fizesse comida, ninguém ali dentro comia.
Uma das primeiras brigas de Rosa e Ulisses na frente da pia foi por causa dele. Por algum motivo alheio ao bom senso, ele resolveu que penduraria suas três gaiolas de passarinhos ali em cima do granito barato. Sua mulher teve uma crise de nervos, protestou contra aqueles bichos que soltavam penas e sujavam onde não deviam e, recebeu um “cale a boca” como resposta.
Bem… a pia ficou suja uma semana. Ulisses nem ligava, passava uma água de qualquer jeito nas coisas e colocava comida. A esposa usava o tanque. Mas um dia, ao amanhecer, Rosinha tomou uma mordida de rato enquanto tentava encontrar uma colher para lavar. Sumiu por umas horas, só voltou à noite. Estava arisca como o rato, se esticou inteira tentando ajeitar as coisas na pia para limpar aquela bagunça, usando dois dedinhos como madame. Ela limpou tudo e fez comida, pois o marido reclamava que estava com fome.
Rosinha passou a noite na cozinha. Não entendia nada de bichos mas, para ela era óbvio que comida só combinava com limpeza. Passou horas sentada olhando para a pia, preocupada. Tirou os pés do chão com medo de outro rato maluco. Olhava para o dedo mordido e lavava-o exaustivamente. A todo instante ficava olhando para um termômetro que tinha colocado sob a axila para ver se não teria febre.
No dia seguinte, Rosinha estava um caco. Seus cabelos, emaranhados, pareciam uma vassoura. A sujeira do marido estava ali em cima, de novo. Mas era curioso como ela não parecia ficar irritada com aquilo.
Só parecia. Depois de limpar a pia e deixá-la com o brilho de costume, não se conteve com penas voando e nem com aquela sujeira de passarinho pingando ali novamente. Nem sequer pensou. Abriu as gaiolas e agarrou o maldito sabiá, o fedorento periquito, uma ave exótica cujo nome pouco importa e lançou todos pela janela.
Como de costume, a pia não viu nada. Mas se visse, teria percebido Rosinha invadir cada uma das pequenas celas como se fosse um gato furioso. Ela agarrou bicho por bicho pelo pescoço e foi jogando todos pela janela. Jogou também as gaiolas. Aliás, arremessou cada uma lá do outro lado da rua com uma força que nem imaginava possuir. Sorriu e riu sozinha… Fez um pacto silencioso com o mármore falso e deu-lhe uma nova polida antes de ir trabalhar. À noite, inventou uma história de que os bichos tinham sido roubados e deu certo. Sorriu sozinha novamente enquanto lavava as louças.
Ulisses, que não fazia nada na cozinha a não ser espiar as fotos nas revistas de Rosa sem ler nada, era também um verdadeiro “reclamão”. Nunca elogiava nada, nem a geladeira em ordem e a cozinha limpa. As amigas da esposa elogiavam aquele trabalho todo, mas foram gradualmente afastadas pelo serralheiro grosseiro que em alguns momentos também estava bêbado.
Alvo em particular da antipatia conservadora, machista e egoísta de Ulisses, era Ângela. Alguns diziam que esses dois não se davam desde os tempos de escola e ninguém esperava que as coisas fossem melhores agora.
Ângela, contudo, foi a que mais resistiu a se afastar da amiga Rosinha. Era uma mulher única, forte, alguns diziam que ela era “temperamental” para não dizer… “explosiva”. Aquela mulher branca de cabelos pretos sempre bem presos era o tipo de pessoa que encarava qualquer coisa, fosse como fosse.
Muito inteligente, Ângela tentava alertar Rosinha sobre o marido. Era uma mulher relativamente bem sucedida perto da amiga. Tinha emprego fixo e registrado. Cuidava sozinha de um filho de uns três anos.
Rosinha sabia que Ângela não era muito agradável e que nem procurava ser. Era uma amiga e tanto, apesar do humor oscilante e indecifrável. Difícil saber quando brincava e quando falava sério. Aos poucos, sumiu, graças ao Ulisses.
Ulisses, aliás, sumia vez ou outra. Da mesma maneira eventualmente passava a semana em casa, sem trabalho. Com relação a pia, é provável que ela não gostasse dele. O mármore de mentira não passava de depósito de sujeiras, além de escora para os momentos “pendulantes” do dono.
Rosinha não gostava quando Ulisses sumia. Ficava horas limpando a cozinha e por fim, se sentava. Parava para olhar tudo e perdia-se em pensamentos. Ela conversaria com a pia, se acreditasse que granitos baratos falassem.
Na verdade, Rosinha resmungava sozinha. Olhava pela janela fazia as coisas no mundo da lua. Não devia ter muitos passatempos. Tomava banho e se perfumava só para ficar em casa. Apesar dos pesares, esperava cerimoniosamente por Ulisses.
Ulisses não contava histórias de suas odisseias. Reclamava apenas. Rosinha talvez não sentisse cheiro ou não fosse muito inteligente. Ou talvez, simplesmente não quisesse ver como o marido estava às vezes. Parecia ouvi-lo com tímpanos rígidos.
A pia foi muitas vezes testemunha silenciosa dos desejos de Rosinha. Ela provocava o marido, tentava se insinuar mas, as coisas só aconteciam no quarto. Ulisses nem ao menos deixava a mulher entrar no banho com ele. Aliás, ele repreendia esse tipo de coisa.
Certo dia, Rosinha, inexperiente tanto em maquiagem como em vestimentas e em tudo mais que não fosse arrumar casa, resolveu sentar no colo do marido enquanto ele terminava o jantar. Foi jogada no chão e ainda teve que ouvir um monte de baboseiras. Sem contar as comparações grosseiras com garotas de programa.
As lágrimas de Rosinha desceram pelo rosto borrando toda a maquiagem, enquanto pelo restante da semana, resmungou que se sentia uma verdadeira idiota. Muita sorte da pia não ouvir aquilo, muito embora, talvez tivesse se compadecido, se para um granito isso fosse possível.
Mas a moça logo voltou às suas fantasias, sabe-se lá por quê. Contudo, quando pensava em Ulisses, perdia a vontade de qualquer coisa e demorava mais que o de costume para arrumar a cozinha. Ficava ruminando os pensamentos vez ou outra.
Em um dos dias repetitivos e monótonos em que o marido simplesmente demorava a chegar ou sumia, Rosinha tomou coragem e se presenteou intimamente, desafogando o desejo de uma forma como nunca tinha sentido antes. Relaxou na cadeira e pensou em algo para o marido. Talvez devesse provocá-lo novamente.
Ulisses demorou para chegar e, quando apareceu, estava bêbado. Rosa não era cega, tinha um faro de perdigueiro e seu bom humor queimou junto com uma comida que o marido sequer chegou perto. A dona da pia protestou com a amiga surda-muda enquanto batia as panelas e as virava de um lado para o outro dando brilho.
Mais raivosa que cansada, Rosinha sentou num banco. Tentou relaxar e dormir. Relembrou se suas próprias fantasias e se cedeu ao desejo, sozinha, mais uma vez. Aquele era seu canto e era o único lugar onde fazia o que queria. Resolveu fazer um bolo e só depois disso dormiu.
Gradualmente, Rosinha passou a ficar menos tempo em casa. Andava toda apressada, lendo livros. Arrumava o que podia e sumia. Deixava comida pronta para o almoço, pois se não deixasse, Ulisses morreria de fome.
Se dependesse da pia, Ulisses teria morrido de fome há muito tempo. Ele ficava encostado no pseudomármore até a mulher chegar e fazer comida. Às vezes reclamava que isso e aquilo não tinham ficado bem temperados e que coisa ou outra estava crua ou queimada.
Rosa era parecida com a pia. Não reclamava de nada. Mas diferente da amiga, descontava na carne que cortava com machado. Chegou até mesmo a decapitar um casal de sabiás desafinados para depois misturá-los à um risoto feito com uma galinha magra e seca que Ulisses tinha ganho… Desta vez a história foi a de que os bichos tinham fugido da gaiola.
Sumido ou não, os colegas de Ulisses procuravam por ele. Um dos que mais apareciam por ali sem encontrar o amigo, era Misael. Mulato de pele reluzente, alto, forte, voz grossa, sujeito imponente… olhos cor de mel… “Simpático”, dizia Rosinha.
Rosinha estava ficando mais bonita. Era o que ouvia do mulato. Se a pia pudesse testemunhar algo na vida, talvez se lembrasse dos olhares que aquela figura lançava para sua dona enquanto ela saía para algum outro canto da casa ou enquanto servia um café ou um bolo.
Sem maiores delongas, foi com Misael que Rosinha desafogou todas as mágoas e anseios. Seus seios nus se espremeram contra a pia pela primeira vez sem precisar lavar nada. Ser jogada sobre o mármore (que definitivamente não importava se era verdadeiro ou não) e ser devorada louca e intensamente era mesmo de que precisava. Se sua amiga pudesse, teria ficado ruborizada.
Bem… a pia continuou no mesmo lugar. Parecendo mármore, mas continuando granito. Limpa e reluzente como de costume. Inteira, graças aos reforços de Seu Luís, é óbvio. Sua dona tinha ganhado outros ares, parecia finalmente desabrochar.
Ulisses retornou de alguma de suas odisséias dias depois, no meio da manhã. Rosinha tinha saído muito cedo, como sempre. Mas, como sempre, ela tinha deixado comida pronta. Quanto ao homem, ele estava esquisito, deu pra ficar olhando para fora, pela janela, por cima da pia.
Os amigos de Rosinha e Ulisses diriam que ele estava imitando um bicho preguiça ou coisa parecida, com aqueles gestos lentos. Contudo, se a pia tivesse alguma cultura, decerto poderia ver naquele olhar e naqueles movimentos, uma onça ou, talvez um tigre. Certamente veria ali um predador voraz e metódico.
Por outro lado, o nada mítico Ulisses poderia ser comparado com o granito onde apoiava os braços. Frio e estático. Surdo também. Não chegou a ouvir quando lhe chamaram para prestar um serviço.
Ulisses urso de pedra, homem de granito de punhos de rocha foi para a sala diminuta assim que escutou Rosinha. Mas a pia pouco ouviu, foi até menos do que o que poderia lembrar usando uma memória de infinitos compostos sedimentares. Houve um barulho e depois um grande silêncio. Estava tudo escuro e assim as coisas continuaram. O granito foi enchendo de poeira no decorrer dos dias e ninguém por lá aparecia, a não ser vizinhos na janela, que espiavam como pombos curiosos.
Umas duas semanas depois, Rosinha voltou para casa. Estava parecendo com um animal selvagem, uma avezinha magrela, seca e arrepiada. Frágil. Qualquer barulho a deixava em frangalhos. Às vezes corria sozinha pela casa querendo se esconder. A boca inchada não deixava muito espaço para pronunciar nada e quase nada para a comida entrar. Somente uma sopinha fria lhe servia. Ângela apareceu mas, não conseguiu muitas palavras que continuassem um diálogo e resolveu apenas dar um abraço forte antes de ir embora. Prometeu voltar logo que pudesse. Se pudesse, a pia veria ali uma grande amiga.
Rosinha ficava olhando lá para fora enquanto lavava as louças. Numa hora ou noutra sentia vontade de vomitar e se segurava, pois ficava muito perto de se engasgar com aqueles dentes amarrados por um maldito aparelho fixo. Às vezes parecia querer usar a pia como trampolim para pular pela janela. Se pudesse bater asas e voar, faria isso, mas sabia que não tinha chances melhores que as de uma galinha, ou seja, poderia no máximo pular uma janela e olhe lá. Quando queria desaparecer entrava no armário. Portas e janelas eram trancadas e retrancadas a todo momento.
Uma semana depois de reaparecer, era um dia chuvoso e cheio de trovões – daqueles onde não se escutaria nada – que Rosinha foi surpreendida por Ulisses que surgiu arrombando a porta da cozinha. Ela fez como um rato, tentou se esconder num buraco e se enfiou ali embaixo, no armário de alvenaria, o que de nada adiantou.
Rosinha estava tão fraca que não conseguia nem gritar por ajuda. Estava caquética, olhos encovados. Sequer deitou com cuidado, acabou despencando desajeitada. Não levantaria dali do armário tão cedo, não com as crises de vertigens que a acometiam quando fazia esforços físicos.
Ulisses não via Rosinha. Era só uma cadela descabaçada no cio e sem dono que merecia apanhar por existir. Chutou ela sem dó até conseguir as respostas que queria. Sumiu e deixou pia e mulher ali.
Se a pia pudesse ser amiga, teria aconselhado Rosinha a ficar quieta e talvez tivesse recomendado algum outro nome no lugar do de Misael. Mas agora nada importava. Não poderia voltar no tempo. Sua dona era como uma obra de granito e conjunto, ali, parada, imóvel, desfazendo-se em lágrimas como a torneira que já não fechava.
Misael apareceu. Rosinha falou de Ulisses e logo foi informada que ele estava morto. Uma faca enorme, ensangüentada, foi jogada sobre a pia e a mulher indefesa foi arrancada debaixo da pia, para ser sacudida e apanhar por ter falado o que não podia.
Rosinha se ajoelhou de dor e sequer teve forças para gritar. Não podia mais reagir e não queria mais nada daquilo. Desejou morrer quando o aparelho na boca foi arrebentado horrivelmente, deixando a mandíbula quebrada dolorosamente livre. Misael, miserável, expôs as armas e obrigou que a ex-amante o satisfizesse. Ele se apoiou na pia e, sedento, forçou a sua ingênua escrava, parando somente quando seu veneno se misturou ao sangue dela.
Nada. Rosinha não era mais nada. Nem pétalas e nem folhas. Estava se engasgando de tamanha dor e derrota. Foi colocada de pé e teve a cabeça mergulhada na pia. Começou a se afogar enquanto ouvia Misael dizer que aquilo seria apenas o começo.
Vômito vermelho sangue. Algo além de uma anomalia na barriga e dos ferimentos na boca de Rosinha. Um botão, um botão que ainda estava vivo.
Se não tinha pétalas e nem folhas, Rosinha ainda tinha espinhos. Dessas plantas a pia, se pudesse ver, poderia dizer que já tinha visto muitas vezes. Se pudesse escolher as que a embelezariam, talvez escolhesse as vermelhas, como a dona gostava. Vermelhas, como o sangue de Misael, que calou a boca e soprou o ar pela traquéia, vazio nos instantes seguintes.
A pia sabia que os descuidados podiam se ferir com o balançar de uma rosa ao vento e foi o que Misael aprendeu num golpe só. Num único instante Rosa virou-se para ele e transformou aquele pescoço de lutador de boxe em uma garganta de frango, aberta de uma jugular à outra.
Rosa largou a faca de cabo branco no chão. Ficou olhando aquele corpo demoníaco suspirar uma última vez, de queixo levantado. Uma mancha enorme de sangue foi se desenhando sobre os azulejos brancos, que graças ao Seu Luís, desembocaram perfeitamente num ralo e não na direção da pia.
Mais uma vez a pia recebeu o vômito de Rosa. Ela alisou o ventre e olhou lá para fora, enxergando uma brecha cheia de estrelas no meio das nuvens. A chuva tinha parado. Fechou os olhos solenemente e suspirou. Somente então, saiu pela porta pisando sobre seu algoz, pisando de uma forma como aquela pia nunca vira antes.
Rosa sumiu por umas três semanas. Os vizinhos limparam a casa inteira e deixaram tudo um brinco. A pia ficou reluzente novamente. Foram semanas movimentadas que duraram muito menos que as de costume. É claro que as coisas ficaram muito melhores quando a dona voltou, pena o mármore falso ser só uma testemunha inerte e silenciosa, pois se pudesse, abanaria o rabinho. Até mesmo Ângela voltou a aparecer.
E foi só então que Rosa compreendeu porque Ulisses não gostava dela. De alguma maneira, Ângela, em meio à tantas conversas, bebidas e brincadeiras ali dentro da cozinha, conseguiu roubar um beijo da amiga. Ela olhou assustada para a dona da pia e foi embora, perplexa. Sumiu por uma semana.
Rosa ficou pensativa. Ficou esperando o telefone econômico recém-instalado tocar. Ângela reapareceu um pouco sem graça trazendo um bolo e querendo ir embora logo. Não conseguiu. Foi seduzida pela amiga e experimentaram um prazer novo. E finalmente a dona da pia conseguiu dizer para alguém o quanto gostava daquele granito barato sem se sentir uma idiota.
Não, não era mais Rosinha. Rosa havia desabrochado. Virou mãe meses depois. Sequer tinha medo do óleo das frituras e muito menos dos ratos ou baratas. Muito pelo contrário, virou caçadora, sumiu com insetos e roedores do quintal inteiro. Chegou até experimentar um vinho e descobriu que aquilo não tinha tanta graça como imaginava. Às vezes via Ângela, que ajudava a fazer alguma comida ou limpar a casa, continuavam amicíssimas mas nunca se tocaram novamente.
Com o tempo, a pia encontrou-se com Seu Luís, que por sinal parecia muito melhor vestido agora. Rosa e ele combinaram algo sobre mais espaço, mas com os mesmos requintes, mármore de verdade, um orçamento. Mais ou menos uns dois meses depois sua dona foi embora, o granito voltou à poeira. Mas as coisas logo deram lugar ao brilho, assim que um corretor apareceu para vender aquela casa.
O corretor elogiava tanto a pia e dava tanto brilho que se parecia com a Rosinha. Mas que sujeito estranho… falava do granito como se fosse mármore…
(esse artigo foi produzido durante a Oficina de Artes Literárias da CPFL em 2006 e esteve disponível também no Wattpad, onde hospedei algumas publicações minhas por algum tempo)